A Marca da Água

Não há tempo a perder.
Buscando materializar um som imaginário, escrevendo um livro de memórias, cantando em cima de um palco de clube no subúrbio, relatando a história da família num jantar entre amigos, assim estamos nós, tentando enviar sinais de que continuamos vivos, o tempo todo.
E, de repente, o inevitável.

Laura tem 40 anos. Vive numa aparente placidez, uma espécie de tristeza cotidiana. Até que um peixe enorme aparece misteriosamente no seu jardim. A presença estranha do peixe, a discussão com o marido, as picuinhas da vida da família, são uma pista falsa (red herring) sobre o rumo das coisas. Laura está diante do inevitável.

Numa narrativa feita de descontinuidades - com um filtro surrealista e algo trágico (pois há aqui uma espécie de autodestruição) – A Marca da Água inicia o processo de reconstrução da pequena Laura, que sofreu um acidente neurológico na infância e começa a sentir novamente os sintomas da doença em seu cérebro.

Quase que voltando a alguns mitos antigos, que trabalhavam constantemente com a ideia de Destino ou Maldição, tirando do indivíduo a “escolha”, a possibilidade de decidir sobre sua liberdade, A Marca da Água atualiza essa questão levando em conta o movimento dos neurônios no cérebro. Hoje, o inevitável é o que a genética, o que os neurônios determinam em nós. Só que aqui, nossa personagem tenta transformar sua maldição em força de vida. Numa atitude afirmadora, escolhe o sintoma em lugar da cura. Tenta materializar o som constante que ouve dentro de sua cabeça, como uma forma de afirmar-se viva e potente. Quer mergulhar nas visões de seu passado, que sua memória vai ativando de forma muito nítida, para reconstruir relações e afetos.

Em Musicophilia, Oliver Sacks já estudava e descrevia uma série de surpreendentes distúrbios neurológicos ligados à música. Já surpreendia mostrando como de um trauma poderia surgir a beleza (como na história do homem que, depois de sofrer uma descarga elétrica provocada por um raio que cai próximo de seu corpo, - e sem nunca ter estudado música - torna-se um virtuoso pianista).

Com tons e movimentos que mantém o universo de A Marca da Água entre o real e o sonhado, a busca e o delírio da personagem flagram estados sutis quando a fragilidade física pode transformar-se em afirmação de vida.


A Marca da Água surge curiosamente quando o Armazém Companhia de Teatro completa 25 anos, num processo onde o afeto foi moldando nossa história e nossa cena. Na nossa sala com paredes de tijolos aparentes, no coração da Lapa carioca, alguma sensação primitiva nos impulsionava no sentido de reafirmar certas questões presentes no trabalho da companhia (a pesquisa do tempo narrativo, a questão da memória e um olhar poético sobre a existência), mas também a tentar renascer – buscando novos códigos, novas formas de se relacionar com o processo criativo, com o espaço cênico e com a narrativa.

Não podemos ter medo de morrer afogados.
 

Paulo de Moraes (diretor e co-autor)

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Críticas

“ (…) Bem escrita, contendo ótimos personagens e impregnada de fantasia e lirismo, "A marca da água" recebeu excelente versão cênica de Paulo de Moraes, um encenador que cada vez mais também se afirma como um poeta. De fato, suas marcações parecem ser a resultante não apenas de uma decisão racional, mas também de impulsos oriundos do inconsciente de uma mente aberta, que sabiamente percebeu, como Hamlet, que somos feitos da matéria dos sonhos. Aqueles que negam esta premissa são as pessoas comuns, mesmo que possuidoras de muitos méritos. Aqueles que a afirmam, são os artistas. E nisto reside toda a diferença...

Com relação ao elenco, todos os profissionais que estão em cena exibem performances seguras e convincentes. E por tratar-se do aniversário de um grupo, tinha em mente não particularizar nenhuma atuação. Mas Patrícia Selonk me obriga ao contrário. Todos sabemos que Patrícia possui vastíssimos recursos técnicos, mas o que mais me encanta na atriz é algo que não consigo definir com precisão. Falar de seu carisma é pouco, mencionar sua inteligência cênica não basta. Mas então, o que seria?

Posso estar enganado, mas arrisco uma hipótese: talvez meu fascínio advenha do fato de que, ao ver Patrícia Selonk em cena, tenho sempre a sensação de que se entrega às suas personagens como se cada gesto fosse o último; cada palavra proferida, a derradeira; cada respiração, o último fôlego. Enfim...é como se Patrícia, a cada momento, nos lembrasse de que cada momento pode e deve conter toda a eternidade. (…)”

Fascinantes compassos de uma nova música
Lionel Fischer (crítico de teatro, blog Lionel Fischer)

 

“O texto de A Marca da Água transita por áreas tão sutis como a memória, a solidão compartilhada, o cérebro invadido pela doença, a procura da música interior e pelo “espetáculo do nada” do cotidiano. Mergulhados em tantos e tão delicados labirintos da existência, os autores constroem personagem que reconstitui seu percurso de volta à origem, perseguindo a sonoridade aquosa que a acompanha desde sempre.

O aparecimento de surrealista peixe no fluxo da vida do casal é somente a eclosão da viagem da mulher em torno de sentimentos, aparentemente delirantes, mas que determinam os rumos daquilo que sente e da apropriação das peças soltas do puzzle do seu passado. A inevitabilidade da morte, que é comum a todo humano, na personagem é iminência. Sofrendo de crescente acúmulo de água no cérebro, não se submete a qualquer tratamento, substituindo-o pela imersão e fidelidade à musicalidade que enche a sua cabeça de sons vitais. O presente lhe parece vazio. O futuro é semelhante ao mundo, sem perspectivas. Resta o passado como tempo de resgate.

Paulo de Moraes regula a cena na mesma dimensão da escrita: poética, imagética e inconsciente. O diretor cria imagens que estão desenhadas como abstrações do real, fortes o bastante para impregná-las de significações evocativas, lançadas ao espectador como quadros em movimento. O ritmo que imprime a esses quadros é que estabelece a nervosidade da cena e o lirismo da ambientação. Como cenógrafo, Paulo de Moraes traça com geometrismo a área da representação - painel de quadriláteros e tanque retangular -, equilibrando a fisicalidade da água e a volatividade das projeções de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca. Esse ambientação acondiciona com suas linhas retas a tortuosa mecânica do cérebro.

O elenco acompanha com retilínea composição a racionalidade emocional do entrecho. Ricardo Martins, Marcos Martins, Marcelo Guerra e Lisa E. Fávero atuam como um coro harmônico de muitas vozes afinadas para que Patrícia Selonk detalhe o seu instigante solo. A atriz, sem dramatismos e exterioridades, mergulha no túnel de águas revoltas da personagem com rigor racional e fina emocionalidade. Demonstração da maturidade e inteligência da intérprete.”       

Mergulho na tortuosa mecânica do cérebro
Macksen Luiz (crítico de teatro, Jornal do Brasil)

 

“Um contido mas tocante texto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes, A Marca da Água, encenada na Fundição Progresso, festeja os 25 anos da Armazém Cia de Teatro. (...) Entre a memória de episódios da infância, cenas reais e toda uma riqueza de visões, o caminho de Laura se afasta do de sua família na rotina cotidiana, mas a envolve sempre com pai, mãe, irmão e marido; no presente como no passado, ela é levada pela água, que a lembra de que a qualquer momento pode se dar, no cérebro, a inundação fatal.
Um belo e austero cenário de Paulo de Moraes é formado por uma parede onde nascem passagem e espelho, e um pequeno lago com a água essencial à ação, tudo enriquecido pelo videografismo de Rico e Renato Vilarouca e luz de Maneco Quinderé. Os figurinos de Rita Murtinho, à prova d’água, são exatos, e Rico Viana dá o apoio necessário da música que persegue Laura e acompanha o clima da ação. (...)
A direção é de Paulo de Moraes, que como sempre conduz a ação com grande comedimento, emprestando ao texto todo o respeito que merece, sem sacrifício das linguagens cênicas; andamentos e marcas, como tons e gestos, são cuidada expressão do que o texto diz, assim como do que ele quer dizer.
Integrado como está ao espaço na Fundição Progresso que ocupa há alguns anos, o elenco do Armazém já tem estilo próprio, contido, despojado, mas sempre muito bem trabalhado e construído. Lisa E. Fávero está modestamente bem na Mãe enfrentando a doença da filha. Ricardo Martins, Marcos Martins e Marcelo Guerra estão todos satisfatórios nos vários papéis masculinos. Mas cabe a Patricia Selonk a responsabilidade de levar a ação adiante no papel de Laura. A tentativa de aparência normal e o progressivo agravamento da doença, isto é, a ameaça da inundação total do cérebro, são cuidadosamente elaborados, em uma atuação contida em que raros momentos de humor afloram em meio em meio à angústia da busca da música interior. A Marca da Água é um espetáculo contido mas comovedor, obra da dedicação permanente do Armazém à sua arte.”

Mar de Emoções
Bárbara Heliodora (crítica de teatro, O Globo)

 

“O poder do teatro. A Marca da Água, última criação da Armazém, coroa os 25 anos de uma companhia que vem mantendo um nível de excelência raro. Ao enfrentar o complexo tema da relação mente-cérebro, o grupo apresenta um espetáculo primoroso, que com um misto de simplicidade e sofisticação engrandece a arte cênica. A história contada é a de uma mulher que fez três cirurgias no cérebro entre a infância e a adolescência e, na meia idade, percebe os sintomas daquela doença retornarem. Desta vez, ela decide evitar os cuidados médicos e lidar solitariamente com seus lapsos, sons internos, alucinações e armadilhas que a memória lhe prepara.

Na encenação de Paulo de Moraes pesa muito mais o como tudo é contado do que qualquer viés melodramático ou psicológico. Ao lado de Maurício Arruda de Mendonça, fiel parceiro de outras boas dramaturgias, o diretor consegue evitar os riscos do didatismo e narra principalmente com a materialidade da cena.
O seu cenário é decisivo nessa operação. Com um fundo recortado em nichos, que ora recebe imagens projetadas, ora aceita a vibração dos reflexos de uma piscina cavada no palco, sugere concretamente o espaço de um cérebro cujos regime de águas está colapsando.

Imprescindível para a eficácia da curva dramática é o desempenho visceral dos intérpretes, sobretudo da protagonista, Patrícia Selonk, que excede seu habitual talento e fulgura. Como o enredo permite, as situações transbordam de qualquer realismo e se sustentam menos nos diálogos do que nas ações realizadas. Os três atores e duas atrizes molham-se e secam-se seguidas vezes, saem e entram das situações mais improváveis, sempre atravessados por um fluxo de energia física que desfaz qualquer psicologia, como metáforas vivas da fluidez sem fronteiras do elemento água.

Nesse arrojo de corpos e materiais soltos, a complexidade da relação entre neurônios e pensamentos se deslinda em um discurso poético e concreto, matéria bruta falando mais alto, ou alcançando mais longe que as explicações científicas. O melhor exemplo da força dessa retórica sem palavras ou sentidos óbvios se dá quando todos tocam juntos seus acordeões. É um momento de grande beleza, até porque nele a cena se torna pura música e restaura potências esquecidas da teatralidade. É uma experiência imperdível.”

Cenário tem papel decisivo na narrativa de "A Marca da Água"
Luiz Fernando Ramos (crítico de teatro, Folha de São Paulo)

 

"No meu caderno de notas eu escrevi "lindo, lindo, lindo" - minha resposta ao momento em A Marca da Água, quando todos os cinco atores pegam seus acordeões e - com o acompanhamento do guitarrista Ricco Viana - tocam uma música hipnotizante. Esse momento representa a música que Laura- aos 40 anos de idade - ouve em sua cabeça. Interpretada por Patricia Selonk, ela é uma mulher casada cujo ferimento na cabeça que sofreu quando criança volta recentemente para assombrá-la. Um líquido está se acumulando em seu cérebro com consequências alucinatórias.

Parece um assunto triste, mas a peça está mais interessada no prazer sensorial que a condição de Laura traz do que nos problemas decorrentes disso. Ela parece gostar da hiper-realidade, dos sonhos que fogem da normalidade e das viagens de volta à sua infância distante. Acima de tudo, a música que ela ouve parece ser uma parte dela mesma, uma característica definidora, que ela está desesperada para registrar no velho gravador de seu pai. É angustiante para o marido (até porque ele não tinha conhecimento de sua história médica), mas para ela é um paraíso particular.

E, na produção realizada por Paulo de Moraes, esse paraíso é muito molhado. O líquido dentro da cabeça de Laura encontra um paralelo nas histórias escorregadias da peça: um peixe que misteriosamente aparece distante 5 km do mar, um pai afogado em um acidente de barco e imagens que envolvem navios de guerra e corpos nadando debaixo d'água. No cenário - também desenhado por Moraes -, a água salpica da piscina que ocupa metade da cena e bolhas explodem nas projeções azuis na parede do fundo.

É um deleite inesperado descobrir uma produção tão talentosa chegando com pouco alarde ao Fringe."

Splash
Mark Fishman (crítico de teatro, The Scotsman - Edimburgo/Escócia)


Ficha Técnica

Dramaturgia: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes
Direção: Paulo de Moraes

Elenco:
Patrícia Selonk (Laura)
Ricardo Martins (Pedro, o pai)
Marcos (Jonas)
Marcelo Guerra (Domênico)
Lisa Eiras (Eugênia, a mãe)

Música: Ricco Viana
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Rita Murtinho
Cenografia: Paulo de Moraes
Vídeo: Rico e Renato Vilarouca
Arte do Cartaz: Jopa Moraes
Projeto Gráfico: Alexandre de Castro
Fotografias: Mauro Kury
Assistente de Cenografia: Ricardo Martins
Assistente de Direção: Kátia Jorgensen
Assistente de Produção: Fernanda Camargo
Produção Executiva: Flávia Menezes
Patrocínio: Petrobras
Produção: Armazém Companhia de Teatro


Turnê

Rio de Janeiro
São Paulo
Curitiba
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